Sobre a Raça
Don Sphynx, Donskoy, gato pelado, gato sem pelo
Descobrindo o Don Sphynx*
* Matéria publicada na revista Cães & Cia n° 400
Reportagem e texto: Marcos Pennacchi / Checagem: Fábio Bense
Depois de uma sequência de acasos ocorridos na Rússia, há pouco mais de duas décadas, o mundo ganhou uma nova raça de gato pelado e, juntamente com ela, o gene da ausência de pelos em versão dominante
Ainda raro em todo o mundo, o Don Sphynx tem apenas duas décadas e meia de história e um papel relevante na criação organizada de gatos. O destaque se deve não só por esse felino ter conquistado criadores em diversos países e reconhecimento por entidades como a Federação Internacional Felina (Fifa), World Cat Fede-ration (WCF) e The International Cat Association (Tica), mas também por ter trazido um gene inédito à gatofilia, com o qual já foram produzidas novas raças.
O Peterbald, por exemplo, um pelado esbelto, resulta do cruzamento de dois Dons Sphynx, um com uma fêmea Oriental e outro com uma fêmea Russian Blue. Já o Ukrainian Levkoy, pelado com exóticas orelhas dobradas, veio de acasalamentos entre fêmeas Don Sphynx com machos Scottish Fold. Nesses cruzamentos, para gerar filhotes pelados basta que a ausência de pelos esteja presente em um dos pais. Isso porque, no Don Sphynx, a característica está associada a um gene dominante.
De outra parte, na raça pioneira de gatos pelados, o Sphynx, desenvolvida a partir de gatos de rua encontrados no Canadá, o gene é recessivo, precisando estar tanto no pai quanto na mãe para nascerem filhotes sem pelo.
Resgate de uma mutante
Uma série de acasos, ocorridos na cidade russa de Rostov-do-Don, às margens do rio Don, contribuiu para que o Don Sphynx se tornasse realidade. O primeiro deles se deu em fevereiro de 1986, quando, ao chegar ao prédio onde morava, a professora Elena Kovaleva ouviu um angustiante miado. O som vinha de um pequeno saco que estava sendo arremessado por garotos, na área comum.
Elena imediatamente pegou aquele saco e constatou que havia nele uma gatinha com 3 a 4 meses de idade, cujos pelos eram escassos no topo da cabeça e extraordinariamente macios no restante do corpo. Optou por cuidar dela e a levou para o apartamento onde vivia com a filha e com outros quatro gatos também tirados da rua.
Chamou a nova gata de Varvara, variante do nome Bárbara. Passados alguns meses, Elena se deu conta de que os pelos estavam escasseando gradativamente em Varvara, a partir da cabeça para as costas. Preocupada, procurou o veterinário. Diferentes tratamentos foram tentados, mas em vão. A queda prosseguia e Varvara não apresentava sintoma de doença.
Choque inicial
Dois anos depois, em 1988, o acaso agiu mais uma vez. No casamento de amigos comuns, Elena conheceu Irina Nemykiny, a pessoa que viria a ser, no futuro, a desenvolvedora da raça Don Sphynx. A simpatia foi mútua e já no dia seguinte Irina visitava Elena. Foi então que a nova amiga se deparou, pela primeira vez, com Varvara.
A gata já tinha a cabeça e as costas bastante peladas. “Ver, de repente, um gato sem pelos causa sensações estranhas – senti receio de tocar nela”, conta Irina, em entrevista à Cães & Cia. Ela comentou, então, com Elena, que tinha lido uma pequena reportagem, com foto em preto e branco, sobre a existência de uma raça de gatos pelados na América do Norte chamada Sphynx. A informação deixou Elena animada – aí estava uma explicação para o fato de Varvara perder pelagem mesmo aparentando estar saudável.
Quando Irina perguntou como era acariciar a gata, duvidou da afirmação de Elena de que aquela era a sensação mais agradável que já tinha experimentado. Somente depois de visitar a amiga por algumas vezes, Irina se sentiu pronta para fazer o primeiro carinho em Varvara. “Foi como um choque elétrico – era inacreditável o calor que vinha daquela pele e a suavidade de sua textura, que parecia veludo; uma delícia de dar água na boca”, descreve Irina.
Receptividade fria
As duas amigas desconheciam a existência de criação organizada de gatos na Rússia. O normal, para elas, era ter em casa gatos de rua. Mas o acaso deu mais uma força em 1989. Quando Varvara tinha 3 anos, foi anunciada, na cidade, uma exposição de gatos aberta também para exemplares sem pedigree, organizada por um clube chamado Alisa.
Elena e Irina estavam curiosas para saber como Varvara seria avaliada por especialistas. Já adulta, a gata estava totalmente careca na cabeça e no tronco, mas tinha ficado com uma “juba” de pelos atrás das orelhas e com pelos curtos lanosos cobrindo as pernas, além de um exuberante tufo na extremidade da cauda. Quando a diretora da exposição se aproximou, Elena foi explicando que aquele gato era um Sphynx, como os da América do Norte.
A diretora disse nunca ter ouvido falar em Sphynx e Varvara não ganhou elogio, muito menos prêmio.
A número um
Em maio de 1990, Irina se mudou para um novo apartamento, bem no dia do aniversário dela. Mais uma vez o acaso agiu, dessa vez em dose dupla. Primeiro, por deixar Irina, repentinamente, sem gatos. Ela tivera dois, no endereço anterior, mas um deles morrera pouco antes, provavelmente por ter comido um rato envenenado, e o outro fugira no período da mudança.
O segundo acaso foi Elena estar com dois filhotes fêmeas de Varvara, com os quais não estaria se a senhora para a qual repassava os filhotes das gatas não tivesse ido viajar. Juntando uma situação com outra, Elena resolveu presentear Irina com o filhote mais pelado que tinha, no qual o topo da cabeça era careca e os pelos eram macios, como os da mãe quando pequena.
O pai da ninhada tinha sido o gato Vasily, de pelo curto cinza-azulado e com uma grande mancha branca, pertencente a um vizinho. Irina amou o presente e, quando viu a gatinha segurar um objeto com os dedos, como se fosse uma macaca, chamou-a de Chita, em referência ao faro chimpanzé do Tarzan.
O nome foi mantido e passou para a história como o da gata número um da criação oficial, aquela da qual todos os exemplares da raça descendem.
Empurrão
No mesmo ano de 1990, o clube Alisa organizou mais uma exposição. Agora havia a novidade de existir um trio de gatas com ausência de pelos: Varvara, Chita e a irmã dela, Vasilina, que continuava com Elena. Como reagiriam os especialistas ao ver que a ausência de pelos era uma característica genética? Elena e Irina foram constatar pessoalmente.
Dessa vez, a diretora mostrou-se bem mais interessada. Manifestou desejo de comprar Chita, que não estava à venda, e deu como prêmio uma saladeira grande de vidro. O fato serviu para mostrar que a ausência genética de pelos tinha o seu valor. Entusiasmada, Irina resolveu desenvolver, a partir de Chita, uma nova raça e chamá-la de Don Sphynx, em homenagem ao rio que banhava a sua cidade.
Estava tão determinada que, naquele mesmo ano, começou a divulgar a novidade para TVs e rádios, para jornalistas que escreviam sobre animais domésticos e para membros da gatofilia, trabalho que manteve nos anos seguintes.
Primeiras Ninhadas
Em 1991, Chita entrou no cio pela primeira vez. A barulheira feita por ela era tamanha que, três dias depois, Irina estava disposta a acasalar Chita com o primeiro gato que aparecesse, só para acabar com tanto escândalo. Fez duas tentativas com felinos de vizinhos, mas Chita não os aceitou.
A terceira foi com um gato de rua enorme, indicado por alguns garotos. Irina conseguiu atraí-lo até o apartamento oferecendo pedaços de presunto. Ao ver o gato, Chita arqueou as costas e bufou raivosa, mas inutilmente. A cobertura aconteceu e nasceram quatro filhotes grandes, nenhum deles com a cabeça careca e todos com pelos eriçados e ásperos, em vez de macios. Resultado: a ninhada não foi aproveitada no programa de criação.
Para o acasalamento seguinte, Irina escolheu Dima, um típico gato de rua de cor smoke blue tabby, pertencente a um vizinho. Nasceram dois machos com o topo da cabeça careca e pelos macios, dos quais Irina selecionou o menos peludo, Hannibal, de cor preta, para usar na criação. A escolha se revelou acertada, já que, ao crescer, Hannibal perdeu todos os pelos.
Dois outros acasalamentos aconteceram entre Chita e Dima. No primeiro deles, nasceram também dois machos, os quais foram para São Petersburgo, outra cidade russa, levados por pessoas diferentes. Um daqueles gatos, Anton, chegou a ser apresentado em exposições, inclusive em Budapeste, capital da Hungria. Foi em São Petersburgo que, em 1994, o Don Sphynx entrou na formação do Peterbald.
Primeiro bebê pelado
Em 26 de outubro de 1992, veio ao mundo a primeira Don Sphynx nascida completamente pelada. Basya, assim a gatinha se chamava, resultou do acasalamento entre Chita e seu filho Hannibal. A nova experiência, utilizando consanguinidade, tinha sido feita depois de Irina ler um livro alemão sobre a técnica, adotada em cavalos para ressaltar características.
A experiência foi repetida e, em 17 de fevereiro de 1993, nascia outro filhote completamente careca, um machinho chamado Viscount. Na mesma ninhada veio Vityaz, um Don Sphynx amarronzado, considerado de tipo perfeito por Irina e que perdeu os pelos rapidamente. Ele e Hannibal foram os primeiros Dons Sphynx a participar da maior exposição da gatofilia russa, realizada em Moscou, distante cerca de mil quilômetros de Rostov-do-Don. Hoje, o Don Sphynx é criado em diferentes países.
Seu primeiro reconhecimento pleno aconteceu em 1997, pela WCF, seguido pelo da Fife, em 2011. A Tica reconhece a raça, desde 2005, na categoria Preliminary New Breed.